2025-01-22 HaiPress
Arthur Lira (à direita) e Hugo Motta — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo
GERADO EM: 21/01/2025 - 22:15
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Recentemente,celebramos dois anos de resistência do Brasil a uma tentativa de golpe que — segundo investigação da Polícia Federal — foi ainda mais grave do que se pensava inicialmente. No entanto a resposta do Congresso Nacional à ameaça à democracia tem sido,no mínimo,ambígua. Enquanto propostas simpáticas aos golpistas avançaram,medidas para punir o golpismo permanecem estagnadas nos corredores legislativos,sustentadas por interpretações subjetivas do Regimento Interno feitas pelo presidente da Câmara dos Deputados,Arthur Lira.
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Um dos projetos em andamento busca conceder anistia aos envolvidos em ações violentas. Após reuniões na Comissão de Constituição e Justiça,Lira decidiu que o tema será analisado por uma comissão especial. Outra proposta,distribuída às comissões,sugere a criação de um feriado nacional chamado Dia de Combate à Perfídia,em referência à resposta institucional ao ataque,em 9 de janeiro,quando o acampamento em frente ao Quartel-General do Exército começou a ser desmontado,e os golpistas começaram a ser responsabilizados. Enquanto isso,a proposta do Executivo para aumentar as penas em crimes contra a democracia segue paralisada,já que Lira nem sequer despachou o projeto.
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O que justifica a diferença na urgência e relevância atribuídas a essas matérias? Em 2024,Lira deixou sete proposições aguardando despacho (o simples encaminhamento para início de tramitação),o maior número desde 2016,exceto em 2020,quando a Câmara operou sob regras extraordinárias devido à pandemia de Covid-19. A discrepância reflete a discricionariedade adotada pelo presidente da Câmara na interpretação do Regimento Interno. A preocupação se torna ainda mais relevante diante da iminente eleição,em menos de um mês,do próximo responsável por liderar uma Casa Legislativa que se torna cada vez mais poderosa,mas também menos transparente e acessível.
Entre as manobras regimentais observadas nos últimos anos,destaca-se a ampliação do papel do Colégio de Líderes,originalmente previsto no Regimento Interno como fórum de aconselhamento ao presidente para definir a pauta do mês seguinte. Na prática,o cenário em Brasília é outro: reuniões a portas fechadas permitem que os líderes decidam a pauta não apenas de uma sessão próxima,mas,por vezes,de sessões já em andamento. Como resultado,os deputados no plenário frequentemente descobrem o que será votado apenas horas depois do início da reunião. Os atropelos regimentais foram tantos e tão frequentes que seria impossível enumerá-los num único artigo.
O que está em jogo é a essência do “clube” estabelecido por Lira na presidência da Câmara,um grupo que faz qualquer manobra necessária para privilegiar um círculo seleto de lideranças partidárias,sobretudo do Centrão. A socialização da autoria das emendas parlamentares de comissão entre todos os líderes — que gerou uma reação firme e apropriada do ministro Flávio Dino,do Supremo Tribunal Federal — exemplifica claramente o modus operandi de Lira. Esse modelo de gestão é reforçado pelo salto no empenho e pagamento de emendas orçamentárias,que se intensificou durante a gestão Lira,como mostrou recentemente a Folha de S.Paulo.
É crucial que Hugo Motta,provável sucessor de Lira,se comprometa com a proteção da República,priorizando iniciativas que fortaleçam a democracia e promovam a responsabilidade política. É alarmante que pautas fundamentais nem tenham sido autorizadas a tramitar,enquanto outras,já mencionadas,avançaram com celeridade. A nova gestão precisa romper com a era dos atropelos regimentais,estabelecendo um ambiente legislativo minimamente previsível,transparente e inclusivo. A análise do legado de Lira e das consequências de sua interpretação do Regimento Interno deve servir como alerta e oportunidade para reavaliar o papel do Legislativo em tempos de crise,reafirmando o compromisso com o Estado Democrático de Direito.
*Beatriz Rey,doutora em ciência política,cursa pós-doutorado na Escola de Artes,Ciências e Humanidades da USP e é pesquisadora associada à Fundação POPVOX,nos Estados Unidos