2025-02-17
HaiPress
Para as mulheres,o ideal de beleza tem,em raízes históricas,uma carga de submissão,analisa especialista — Foto: Shutterstock
GERADO EM: 16/02/2025 - 22:55
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Durante 30 anos,a escritora gaúcha Carina Luft,de 53,ouviu tudo sempre igual. Na carreira de secretária executiva bilíngue em grandes empresas,além da pressão por resultados,sofria com comentários constantes sobre a aparência. “Eram pedidos sutis do RH para passar um batom,retocar a raiz do cabelo... Ter uma aparência ‘limpa’,jovial e transmitir saúde. Eu e todas as minhas colegas fazíamos Botox e clareamento nos dentes”,relembra.
Com tamanha cobrança,Carina criou uma relação tóxica com o espelho,levando-a à exaustão até abandonar a carreira corporativa. Ainda assim,continua gastando boa parte de seu dinheiro com procedimentos estéticos. “Sou ansiosa,não gosto de ver meu rosto ‘derretendo’ . Faço dieta,malho,porque quero ser magra. E,muitas vezes,fico irritada por ter de estar arrumada e maquiada ao sair”,desabafa a escritora. “Fui tão massacrada todos esses anos que ainda não consigo desconstruir isso dentro de mim.”
A escritora gaúcha Carina Luft,de 53 anos — Foto: Arquivo pessoal
O relato de Carina encontra eco na rotina de muitas mulheres que vivem o “beauty burnout”,termo descrito recentemente pela revista britânica Dazed como a busca pela perfeição carregada de sintomas de esgotamento. Entre eles,estão a ansiedade exacerbada,a tomada de decisões financeiras arriscadas em função de procedimentos estéticos e a desistência de eventos sociais porque arrumar-se é uma tarefa árdua. Cenário previsível também no Brasil,que liderou o ranking de cirurgias plásticas no mundo. Só em 2023,segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética,foram realizados mais de 3 milhões de intervenções estéticas,como Botox,lipoaspiração e preenchimento com ácido hialurônico.
“Cuidar do corpo e da saúde,comer bem,malhar,e várias outras coisas,viram uma lista interminável. As pessoas se sentem pressionadas e,ao mesmo tempo,nunca satisfeitas”,explica a cirurgiã plástica paulista Sheila Mulatti. “Muitas vezes,uma paciente chega ao consultório e quer mexer em tanta coisa,no corpo e no rosto,que eu digo: ‘Calma,não precisa disso tudo agora’.”
Aos 40 anos,ela própria já sucumbiu a tantas demandas. “Vejo fotos da época da faculdade e penso: como eu era linda,né? Mas achava que estava tudo fora do lugar. Hoje,procuro o equilíbrio,mas entendo a dor alheia e sou empática”,continua Sheila. Para a médica,a sensação é de que,mais do que mudanças,muitas pacientes querem comprar sua nova versão. “Como se o procedimento fosse um objeto para atender aquela expectativa.”
A cirurgiã plástica Sheila Mulatti,de São Paulo — Foto: Arquivo pessoal
A promessa de um produto que transforma qualquer um em sua melhor versão,— leia-se,mais jovem e mais bonita — é o mote de “A Substância”,com Demi Moore,indicada ao Oscar de Melhor Atriz pelo filme que impactou espectadores mundo afora no ano passado. Na ficção e na realidade,a batalha é dolorosa. E quase sempre perdida. “Há muitas armas em prol da beleza,mas elas também podem se transformar em armadilhas. Vivemos o auge do exagero na busca pela juventude perdida e nunca seremos totalmente felizes,porque ela passa”,reflete o beauty artist Celso Kamura.
Para as mulheres,analisa o psicanalista e professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo,Wilson Franco. “Na Europa moderna,a beleza como conhecemos hoje passa a ser considerada um fim em si mesmo,tornando-se condição para alcançar um lugar de pertencimento social”,pontua o especialista. Mesmo com tantos movimentos celebrando uma aparência natural e a pluralidade,as mulheres,um dia,serão totalmente livres? “Por enquanto,isso ainda me parece um sonho. A tendência é que os padrões atuais se acentuem. Mas creio na sororidade: ela tem um potencial libertador. E há mais espaços para que as mulheres possam resistir”,finaliza Wilson.
Sejamos,então,resistência.