2025-01-22 IDOPRESS
Bispa Mariann Edgar Budde durante seu sermão no Serviço Nacional de Oração na Catedral Nacional de Washington — Foto: AFP
GERADO EM: 21/01/2025 - 20:58
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Demorou mais de 24 horas,mas a primeira face da oposição a Donald Trump tomou forma. Não veio do Partido Democrata,anestesiado pela derrota e temeroso em defender premissas de direitos humanos que batem de frente com a opinião pública – e seus votos – no momento. Muito menos deu o ar de sua graça em ponderações inexistentes de um Partido Republicano reduzido a duas alas,a do "sim",e a do "sim,senhor Presidente". Sobre o perdão dado a quase 1.600 indivíduos condenados,congressistas governistas que há quatro anos fugiram desesperados da fúria de milicianos de extrema direita na invasão do Capitólio afirmaram ontem,impávidos,ser preciso "olhar para o futuro,não para o passado". A primeira voz a enfrentar Donald Trump em sua segunda encarnação o fez do púlpito,é feminina e se chama Mariann Edgar Budde.
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A bispa Mariann,mãe de dois filhos,tem 65 anos e comanda a comunidade episcopal da capital dos Estados Unidos desde 2011. Foi convidada para participar nesta terça-feira da cerimônia ecumênica que ocorre tradicionalmente no dia seguinte à da posse do novo presidente,na Catedral Nacional de Washington. Na primeira fila,no mesmo banco,estavam sentados o presidente,o recém-empossado vice,J D Vance,e suas respectivas famílias,por eles consideradas,com orgulho,"tradicionais". As câmeras registraram o desconforto do político de Ohio e a irritação de Trump com as palavras da religiosa.
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Com os olhos direcionados para o banco onde se sentavam os Trump e os Vance,Mariann pregou. Um dia após o anúncio de um pacote de medidas que afetarão a vida real de milhares de americanos,ela pediu misericórdia:
— Em nome do nosso Deus,peço que o senhor tenha misericórdia das pessoas de nosso país que estão assustadas neste momento. Há crianças gays,lésbicas e transexuais em famílias que votam nos democratas. Alguns deles temem hoje por suas vidas. Uns podem não ser cidadãos americanos,outros não ter a documentação adequada para viver aqui,mas a grande maioria não é criminosa. Eles pagam impostos e são nossos bons vizinhos. São membros fiéis das nossas igrejas,templos,mesquitas e sinagogas. São nossos próximos”.
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A bispa seguiu,seu olho vidrado no de Trump:
— Peço,senhor Presidente,que tenha misericórdia daqueles em nossas comunidades cujos filhos temem que seus pais sejam levados embora. E que o senhor ajude aqueles que estão fugindo de zonas de guerra e da perseguição em suas terras a encontrar aqui nos EUA compaixão e votos de uma boa chegada.
Quando Mariann terminou seu sermão humanitário,Trump não se conteve. O presidente,que desde sexta-feira tem sido saudado por aliados,admiradores,lobistas,entre eles CEOs com patrimônio de bilhões,puxa-sacos e sabujos,inclusive brasileiros,foi forçado pela primeira vez em seu segundo mandato a ouvir o que não queria. Faz bem. Mas quando a bispa encerrou seu pedido,ele se virou,e,contrariado,disse algo a Vance,que balançou a cabeça em resposta. Concordando,claro.
Mais tarde,enquanto Trump caminhava pela Casa Branca com sua chefe de gabinete,Susie Wiles,repórteres perguntaram o que ele tinha achado do sermão. Ele devolveu: “E vocês,gostaram? Acharam interessante?". Como não costuma se relacionar bem com o silêncio e se delicia com o som da própria voz,não deu tempo para respostas. "Não achei que foi um bom sermão,não. Poderiam fazer algo muito melhor”. Resta saber para quem.
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Em entrevista ao New York Times após o sermão,a líder religiosa afirmou que o construiu preocupada com "o grau de permissividade que certas pessoas têm de serem cruéis com os próximos". E que uma das qualidades centrais de um grande líder é "ter misericórdia,especialmente daqueles que não são percebidos como os seus". O recado não poderia ser mais direto.
Dentre as medidas anunciadas por Trump no dia anterior estavam a de que o governo reconhecerá apenas os sexos masculino e feminino e encerrará programas “radicais e inúteis” de diversidade,equidade e inclusão nas agências federais. Também removeu informações sobre os direitos LGBTQIA+ dos websites do governo,incluindo a página do Departamento de Estado dedicada à promoção dos direitos gays mundo afora.
Quanto aos imigrantes,Trump assinou medidas que determinam o fim do direito imediato de cidadania a quem nasce no país,suspende a entrada de refugiados por tempo indeterminado,incluindo pedidos de asilo,e libera o envio de militares para agir na fronteira com o México. As batalhas legais já começaram em diversos estados governados por democratas,mas o primeiro embate moral,cara a cara,foi obra da bispa de Washington.
A expressão de surpresa de Trump durante o sermão também revelou a memória curta do republicano. Em junho de 2020,a bispa Mariann criticara duramente o então presidente de primeiro mandato,inclusive em um célebre artigo para o New York Times,por ele usar a polícia para esvaziar a Lafayette Square,ao lado da Casa Branca,em meio aos protestos do Black Lives Matter,após o assassinato,por um policial branco,do cidadão negro George Floyd,para uma sessão de fotos na vizinha igreja de Saint John. Queria imortalizar seu registro segurando uma Bíblia. Misericórdia.