2025-01-12 IDOPRESS
Crise financeira e pandemia empurraram mulheres jovens em busca de outras formas de ganhar dinheiro — Foto: Reprodução/Bloomberg
GERADO EM: 11/01/2025 - 15:57
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Alliyah Jasmine Wan é uma “stay-at-home girlfriend” (namorada que fica em casa) com mais de 200 mil seguidores no TikTok e colaborações lucrativas com marcas como Ritual,de multivitaminas,e a empresa de skincare sul-coreana Medicube. Postagens recentes incluem: “Quando ele te dá a bolsa dos seus sonhos de outono como um presente de ‘Desculpa,tenho trabalhado muito’.” Outras mostram ela “entediada em casa” antes de lembrar do carro,da piscina ou do equipamento de pilates que seu namorado comprou.
Wan é uma das milhares de influenciadoras que aparentemente adotam um estilo de vida de luxo e facilidade que o feminismo da segunda onda lutou para superar. A projeção,no entanto,é uma fantasia: não só “ficar em casa” nunca foi fácil,mas essas mulheres são criadoras de conteúdo bem-sucedidas e,frequentemente,empresárias. Seu negócio,porém,é promover ou personificar arquétipos (a dona de casa online,a namorada que fica em casa,a serial sugar dater) que hoje representam um objetivo desejável para algumas mulheres.
É uma mudança que aconteceu à medida que a boa vida — a casa nos subúrbios,o salário familiar seguro,os 2,4 filhos — fica cada vez mais distante para muitas mulheres. As histórias que contamos a nós mesmos — de que o trabalho duro será recompensado,de que ir à faculdade resultará em um emprego estável e de que esse emprego resultará em uma entrada para uma casa — começaram a se desintegrar,primeiro com a crise financeira e depois com a pandemia. A resposta feminina ao mesmo colapso dos caminhos para a segurança financeira? Eu a chamo de “Disaster Girl”.
A Disaster Girl assume diferentes formas. Ela é a “tradwife” (esposa tradicional) promovendo os supostos benefícios da dependência financeira de um provedor masculino,a #Delulu Girl (ou seja,deliberadamente delirante) prometendo que você pode manifestar seu caminho para um saldo bancário mais saudável,a streamer do TikTok sendo paga em tokens e presentes digitais. E ela surge em um momento de crise,enquanto mulheres que foram incentivadas a se “dedicar” às suas carreiras agora se encontram cuidando de pais idosos,vivendo com filhos em idade universitária ou criando filhos até o ponto de exaustão. É surpreendente,então,que uma geração mais jovem possa ser seduzida pela fantasia de um retorno aos anos 1950,quando as coisas pareciam mais simples? É surpreendente que os mantras mais sedutores possam vir de mulheres que encorajam suas colegas a encontrar um homem rico para cuidar delas?
Shera Seven (Leticia Padua),uma influenciadora que compartilha sabedoria sobre como encontrar provedores masculinos ricos,inclui conselhos como “use sua voz feminina para conseguir o que deseja” e “certifique-se de que o segundo encontro seja um encontro financeiro,o que significa compras,algum tipo de presente ou gastar muito dinheiro. Quanto mais rápido você o fizer gastar dinheiro,mais rápido ele se apegará a você.” Ela encerra a maioria das postagens com sua frase de assinatura,“Sprinkle Sprinkle.”
Não é difícil ver como o fenômeno da Disaster Girl se sobrepõe à tendência das tradwives,um movimento baseado em redes sociais que promove papeis de gênero tradicionais e exalta tarefas domésticas,a criação de filhos e os benefícios de um provedor masculino forte. Essa interseção é personificada por influenciadoras como Ballerinafarm (Hannah Neeleman),uma mãe mórmon de oito filhos treinada em Julliard e com 9,8 milhões de seguidores no TikTok,ou Nara Smith,conhecida por cozinhar usando trajes cheios de babados que parecem totalmente inadequados para lidar com uma batedeira KitchenAid.
Neeleman,sob qualquer medida,é uma empresária de sucesso: ela administra uma empresa de leite cru que vende proteína à base de colostro para o público em geral. Ainda assim,ela também é uma mórmon praticante que descreve o abandono de sua carreira de dança na universidade para se casar e ter filhos como “a melhor decisão que já tomou”.
Na era de ouro das donas de casa,a socióloga Arlie Hochschild observou que as mulheres frequentemente eram obrigadas a transformar suas emoções e aparência em recursos econômicos. Isso incluía aliviar sentimentos feridos,gerenciar vibrações negativas,parecer bonita e bem-apresentada ou simplesmente sorrir muito. Era uma moeda invisível. O que é novo hoje é que a internet e os tokens são ferramentas poderosas para transformar essa moeda não monetária em dinheiro de verdade.
No serviço de streaming Twitch,da Amazon,uma mulher do Canadá que se chama Pinkydoll (nome real Fedha Sinon) faz cosplay de NPC — um personagem não jogável no jargão dos videogames. Ela faz pipoca com uma chapinha e repete frases em um tom robótico como resposta aos presentes de admiradores online. Embora Pinkydoll seja uma pessoa real,ela também é uma espécie de marionete virtual,animada por tokens virtuais enviados por espectadores. “Hee haw,you got me feeling like a cowgirl” (“Hee haw,você me faz sentir como uma cowgirl”),ela responde mecanicamente ao presente de um chapéu virtual,enquanto um “yes yes yes” reconhece o presente de uma rosa virtual. Espectadores que enviam presentes maiores são mencionados pelo nome: “Oh,obrigada,Joel. Eu amo você.”
Cada um desses presentes virtuais — imagens em estilo emoji ou emotes — é parte mensagem fofa,parte token comprado pelos espectadores com dinheiro real. Personagens como Pinkydoll transformam esses presentes em créditos online ou mesmo em dinheiro,que pode ser usado para comprar bens ou pagar o aluguel. As plataformas de streaming ficam com uma fatia — 50% no caso do TikTok e 30% no Twitch. E como o espectador está enviando presentes virtuais,e não dinheiro diretamente,a transação mistura pagamento com algo mais íntimo.
As Disaster Girls,como Pinkydoll e outras,desenvolveram uma linguagem — e um conjunto de métricas — para descrever e medir esse estilo de vida. Nos fóruns Sugar Bowl do Reddit,onde aqueles que buscam relacionamentos transacionais se reúnem para discutir os termos de trocas,jovens mulheres debatem o custo apropriado de um PM (pay per meeting – pagamento por encontro) e presentes adequados,se houver,para um “meet and greet” (primeiro encontro). Presentes comuns em relacionamentos "sugar" estabelecidos incluem mensalidades escolares,aluguel,joias,bolsas de grife,carros e viagens internacionais. Presentes são “uma medida do sucesso da SR” (sugar relationship),escreve um usuário; eles fazem parte de uma experiência completa de “tratar a vida dela como a de uma princesa”.
Pesquisas recentes mostram que,embora as mulheres da Geração Z lutem para encontrar dinheiro para economizar e estejam mais ansiosas com finanças do que gerações anteriores,elas também são tecnologicamente hábeis e financeiramente alfabetizadas. Tendo crescido no rescaldo da crise financeira,muitas tentam economizar como se a boa vida ainda fosse uma possibilidade,mesmo que esse futuro nunca chegue. E,como grande parte da internet se baseia em monetizar trabalho que não parece trabalho,por uma moeda que não parece dinheiro,não é surpresa que essas jovens estejam descobrindo como extrair valor da web.
Afinal,mulheres têm feito isso há décadas. Os exemplos de hoje são apenas mais profundamente online e capturam um niilismo financeiro extremo. Nós adoramos assistir garotas como Wan exibindo suas coleções de bolsas Hermès e rotinas de cuidados com a pele,tradwives cozinhando com roupas improváveis e finfluencers vendendo cristais como solução para insolvência financeira. Talvez a internet sempre tenha sido um mercado feminino. Ou talvez essas garotas sejam apenas o mais recente combustível para o capitalismo de plataformas.