2024-12-19 HaiPress
Prédio residencial em Ternopil,na Ucrânia,atingido por bombardeio russo na madrugada — Foto: AFP PHOTO / UKRAINIAN EMERGENCY SERVICE
GERADO EM: 18/12/2024 - 22:17
O Irineu é a iniciativa do GLOBO para oferecer aplicações de inteligência artificial aos leitores. Toda a produção de conteúdo com o uso do Irineu é supervisionada por jornalistas.
CLIQUE E LEIA AQUI O RESUMO
Se há uma coisa que une correntes de esquerda e extrema direita brasileiras,é Vladimir Putin. Ambas deliram ao afirmar que Putin é o bastião de um mundo que não existe mais,o último herdeiro do comunismo soviético. Ignoram,dentre tantos outros,o fato de oligarcas aliados a Putin nunca terem enriquecido tanto — jogo esse que começou a virar. A partir dessa ilusão,tiram consequências opostas.
'Jogo político': Ipec inédito mostra avaliação do governo Lula por área; leia a newsletter
A esquerda vê Putin como modelo de um futuro alternativo,em que os Estados Unidos não têm protagonismo internacional,e a Rússia joga suas cartas como líder indômita. A extrema direita o vê como o comunista que come criancinhas,digno do ideário reacionário da ditadura militar.
Malu Gaspar: ‘Não existe a menor possibilidade de delação’,diz novo advogado de Braga Netto
Esse erro de diagnóstico traz consequências graves para o atual cenário geopolítico. Não é de hoje que a esquerda brasileira — e a latino-americana,à exceção do presidente chileno Gabriel Boric — hesita em tomar um lado na guerra. Declarar-se pró-Ucrânia não soa para ela como obviedade. Traz consigo um ônus de justificação.
Esse mesmo erro de diagnóstico da esquerda dá via livre para a extrema direita usurpar uma pauta importante e fazer dela seu instrumento de guerra particular. Entre os dias 29 de novembro e 1º de dezembro,Damares Alves (Republicanos),Sergio Moro (União Brasil),Magno Malta (PL) e Paulo Bilynskyj (PL) — os três primeiros,senadores; o último,deputado federal de São Paulo — integraram uma comitiva de parlamentares latino-americanos a participar de uma conferência parlamentar na Ucrânia sobre a cooperação entre esses países.
Com representantes de Belize,Argentina,Guatemala,Chile,Colômbia,República Dominicana,Honduras,México,Panamá,Peru,El Salvador e Equador,eles se reuniram com o presidente do Congresso e outros deputados ucranianos,assinando um comunicado final que promete estreitamento de relações.
Damares usou o evento como palanque político para vociferar contra o “terrível regime” do “comunismo” que a Rússia continuaria a promover e para fazer o “jabá” do cadastro nacional de pedófilos,linha que Magno Malta também seguiu. Moro e Bilynskyj exaltaram o caráter heroico de ir a um país extremamente perigoso para defender um mundo mais justo e criticaram a posição do governo Lula na guerra.
Nenhum desses parlamentares se coloca em prol da democracia brasileira. Não espanta o oportunismo de quererem holofotes internacionais para defender uma causa que nem em casa praticam. Casa de ferreiro,espeto de pau.
Também foi um convite diplomático infeliz. Ao mesmo tempo,a Ucrânia precisa de amplo apoio pelo mundo. Tenta fortalecer laços com o Sul Global mais do que nunca,com quem quer que lhe dê espaço — algo arriscado,vide o “apoio” do presidente argentino Javier Milei.
A nova orientação diplomática vem ao encalço da constatação de que até aqui os ucranianos negligenciaram laços com o Sul Global — rótulo com que também se identificam — e agora precisam construir pontes. O Norte Global falhou com eles,bem como suas instituições. A Ucrânia não pode depender de seu apoio material: se,por um lado,nominalmente entoam o coro dos direitos humanos e da autodeterminação dos povos,por outro,mostraram leniência e violento desrespeito a eles.
Os ucranianos perceberam,em suma,que o mundo não pode continuar rodando sob a batuta do Norte Global. A Ucrânia pode ser artífice de uma nova ordem,em que formas mais democráticas e inclusivas de fazer política tomem as rédeas dos assuntos domésticos e internacionais. Para tanto,porém,não pode haver tribuna para líderes de extrema direita latino-americanos que querem sequestrar agendas justas para seus próprios fins.
*Marina Slhessarenko Barreto é pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e coautora do livro “O caminho da autocracia”