2024-10-29 HaiPress
Neurocientista Roberto Lent. — Foto: Beatriz Orle/ O Globo
São 86 bilhões de neurônios,enlaçados em centenas de trilhões de circuitos neurais que compõem o complexo cérebro humano. A ciência avançou em desvendar os mecanismos presentes na poderosa máquina que controla cada um de nós,mas ainda descobre,todo dia,novidades sobre o emaranhado de células,sinapses e caminhos que se traduzem no próprio ato de ser.
No novo livro “EXISTO,LOGO PENSO – História de um cérebro inquieto”,lançado neste mês pela Editora ICH (Instituto Ciência Hoje),o neurocientista Roberto Lent reúne parte desses conhecimentos em artigos que comunicam,de forma simples e acessível,o que se sabe até agora.
Lent – que participou do estudo emblemático que mapeou a quantidade de neurônios no órgão – intercala crônicas científicas com experiências pessoais vividas ao longo da vida,como ter sido preso durante a ditadura militar e o nascimento da filha,Isabel,com uma malformação cerebral.
— Eu trabalho com divulgação científica há muitos e muitos anos,e uma das coisas que mais me motiva é como podemos relacionar as descobertas com o cotidiano das pessoas. Acredito ser uma maneira mais eficaz de passar informações que às vezes são frias,abstratas e pouco sensíveis — conta o membro titular da Academia Brasileira de Ciências.
Em entrevista ao GLOBO,Lent,que é também professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Instituto D’OR,fala sobre a nova obra,o desenvolvimento cerebral do nascimento até o fim da vida,a formação das memórias e outras curiosidades da neurociência.
O livro intercala histórias pessoais com os artigos de neurociência escritos pelo senhor ao longo dos anos. O que motivou esse formato?
Eu trabalho com divulgação científica há muitos e muitos anos,abstratas e pouco sensíveis. Falo da minha geração,da ditadura militar,que me atingiu,da minha filha que nasceu com uma malformação congênita do corpo caloso,que é uma região no cérebro.
Hoje existem muitas novas formas de divulgação científica,mas ao mesmo tempo há um negacionismo que parece cada vez mais comum. O senhor acredita ser mais difícil falar de ciência?
Eu sou um otimista,então na verdade acredito que seja mais fácil de certa maneira,porque temos muitos veículos diferentes. Existem redes sociais,televisão,cinema,teatro,qualquer meio de comunicação é válido para se comunicar ciência. Até museus,exposições e mesmo o carnaval com as escolas de samba têm atuado nesse sentido.
Nas suas crônicas,o senhor fala sobre o cérebro ser uma estrutura muito plástica. Ainda assim,temos hoje a carga pesada de doenças neurológicas como Parkinson e Alzheimer e um conhecimento limitado sobre elas. Até que ponto o senhor acredita que vamos desvendar essas doenças?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Já sabemos bastante sobre plasticidade cerebral,mas não o suficiente para abordar essas doenças. Sobre o Alzheimer,sabemos que ocorre o depósito de proteínas anômalas no cérebro que interferem na comunicação dos neurônios e levam a déficits de processamento de informação.
Mas será que conseguimos dar uma volta nessa doença ou curá-la? Até o momento não,porque não temos instrumentos terapêuticos que conseguem fazer isso. O máximo que conseguimos é adiar os sintomas,com atividade física e intelectual. Os mecanismos exatos disso não sabemos,mas certamente tem a ver com a plasticidade,que significa construir ou reconstruir a comunicação entre neurônios.
Se eu leio muito,meus circuitos de leitura são ativados com muita constância. Então,se por um lado eu perco sinapses pela doença,por outro eu ganho novas e as fortaleço pela leitura. No caso do exercício físico é a mesma coisa,mas com neurônios que atuam na mobilidade. Isso se contrapõe à perda das sinapses causada pela doença de Alzheimer e outras degenerativas,retardando os sintomas.
Mas essa neuroplasticidade está presente a todo o momento. Tudo o que fazemos modifica o cérebro. Isso é o mais intrigante,porque são 86 bilhões de neurônios,860 trilhões de circuitos entre eles,e eles mudam a cada momento. Nosso cérebro a cada minuto já não é o mesmo do minuto anterior. Isso é bastante demonstrado em vários tipos de experimentos. Por isso a plasticidade é de extrema importância.
O senhor acredita que vamos conseguir avançar nas lacunas que faltam ou há um limite do conhecimento humano sobre esses mecanismos?
Nunca existirá um final,sempre há o que se descobrir. Eu sempre digo que a ciência é como um limite matemático,cujo conceito diz que o limite é um ponto adiante que nunca conseguimos chegar. Assim é a ciência,você nunca consegue desvendar completamente todos os fenômenos porque sempre aparecem novas perguntas,dúvidas,pontos de interrogação.
E em relação à inteligência artificial,para o senhor ela é capaz de chegar à capacidade da inteligência humana?
A inteligência artificial depende do passado,de uma base de dados enorme,para funcionar. Ela lida com esses dados de uma forma passiva,enquanto o cérebro humano lida melhor com o futuro,criando novas informações. Então a IA acumula o que os humanos criaram e utiliza isso para funções que se parecem com o que o cérebro humano faz. Mas quem cria mesmo conhecimento é o cérebro humano.
Não sei se chegaremos a um momento em que teremos criação de conhecimento pela IA. Será que você consegue fazer pesquisa científica original com ela? Se eu pedir a ela para descobrir a cura de uma doença,dificilmente ela vai me dar uma resposta nova. Ela não gera nada novo como o cérebro é capaz de fazer.
Ao longo do livro,o senhor aborda diferentes fases da vida,começando com o desenvolvimento cerebral de bebês. O que a neurociência tem descoberto de mais relevante sobre o início da vida?
Existem pontos com repercussões éticas e jurídicas muito importantes. Por exemplo,será que conseguimos definir um momento em que o cérebro humano dentro do útero adquire alguma forma de consciência? Não temos essa resposta hoje.
Tem um experimento muito interessante que analisou o tipo de choro de crianças recém-nascidas de origem francesa e alemã. Eles verificaram que o choro das francesas tinha uma conotação oxítona,a ênfase era no final. Já o choro das alemãs era paroxítono,ou seja,com ênfase na penúltima sílaba.
Isso expressava,segundo os pesquisadores,que a criança dentro do útero ouvia o exterior,mais fortemente a voz da mãe,e assimilava o sotaque,a musicalidade do idioma,que se reflete no choro. Mas não sabemos quando essa sensibilidade surge na gestação,se é com 20,30 semanas.
Essa ciência tem repercussões muito importantes no contexto do aborto,por exemplo. Claro que cada pessoa tem a sua opinião,mas se conseguíssemos,pela neurociência,definir qual grau de consciência um feto humano tem,e quando ela começa,poderíamos orientar melhor as decisões a respeito do tema.
Outra passagem do livro é sobre a relação entre sono e criatividade. Como um influencia o outro?
A criatividade é uma capacidade humana admirável,e a questão é entender quais os mecanismos cerebrais dela. Sabemos que um deles é relacionado a uma fase do sono ligada ao adormecer,ou ao despertar,em que você passa pelos chamados sonhos lúcidos. Você sonha,mas ao mesmo tempo tem contato com o mundo externo.
Então quando você começa a adormecer,mas acorda de repente,você pode ter um clique criativo. Eu conto no livro o truque de Thomas Edison,inventor da lâmpada. Conta-se que ele deitava segurando um objeto e ia se deixando adormecer. Com o sono,ocorria o relaxamento muscular,e aí a mão abria,o objeto caía,e o barulho o acordava. Nesse momento,ele despertava com uma ideia na cabeça.
Existem outros casos de pessoas que utilizavam essa transição da vigília para o sono para estimular a criatividade,como o pintor Salvador Dalí. E o mesmo ocorre quando se está despertando,em que se há aquela fase em que você não está nem dormindo,nem completamente acordado. São fenômenos ainda com pouca explicação,mas uma grande fonte de pesquisa.
O senhor também fala sobre a formação de memórias e sua relação com nossas emoções. Como elas estão interligadas?
Quando adquirimos uma nova informação,filtramos o que realmente nos interessa. Esse filtro é muito carregado de emoção. Lembramos muito onde estávamos no 11 de Setembro. Eu estava na sala da minha casa,e um vizinho me telefonou para contar o que tinha acontecido. Lembro exatamente quem estava comigo,como era a sala,se estava chovendo ou não. Mas do que aconteceu no dia anterior eu não tenho nenhuma memória. A memória é modulada pela emoção. Mas não apenas por ela.
Outro aspecto envolvido é a motivação. Se eu faço força para me lembrar de algo,como acontece com os estudantes. No livro,cito um experimento bem interessante sobre associação do ensino da matemática e música. Dois grupos de crianças foram acompanhados,em que um tinha uma prática de música antes da aula de matemática. Ao avaliar o desempenho depois,eles tiveram um resultado melhor na matemática. A simples associação no tempo com a música,que é algo motivador,afetivo,já ajudou a consolidar aquela memória.
Em relação ao fim da vida,o que sabemos sobre esse processo?
Essa é uma característica de todos os seres vivos,nenhum é eterno. Mas a morte ainda significa um mistério para os seres humanos. Um ponto é: em que momento a definimos? No início,era a parada do coração,mas descobrimos que ele podia parar e voltar. Atualmente,definimos como sendo a morte do cérebro. Mas a questão é em qual momento o cérebro de fato morreu.
A resposta que até agora tem aparecido é que o processo da morte dura várias horas. No interior do cérebro,à medida que os neurônios vão morrendo,outras células cerebrais chamadas de astrócitos começam a lutar contra esse processo,secretando produtos que poderiam ressuscitar os neurônios. Obviamente isso não funciona,mas esse processo mostra que a morte não é um ponto,mas sim um período,uma faixa de transição.
O senhor começa o livro com um artigo sobre como a saudade,uma emoção bem próxima dos brasileiros,é difícil de ser definida. O que a neurociência mostra de interessante sobre isso?
A peculiaridade maior da saudade é que ela pode ter duas conotações,ser positiva ou negativa. “Saudade da Bahia”,de Dorival Caymmi,mostra a saudade no seu lado positivo,mas “Chega de Saudade”,de Tom e Vinícius,traz esse lado mais sofrido. E existem trabalhos com exames de ressonância que mostram quais as regiões cerebrais e as redes neuronais envolvidas num lado e no outro. Isso é uma descoberta bastante interessante,porque significa que uma mesma emoção é sentida de formas diferentes.
Eu menciono no livro que,na ditadura militar,quando estava preso num quartel de fuzileiros na Baía de Guanabara,num banheiro improvisado em cela,eu escutava o sentinela ouvindo música no rádio de pilha. Ele sempre ouvia “País Tropical”,do Wilson Simonal,que é uma música pela qual a maioria das pessoas tem uma sensação de alegria,mas para mim ficou associada ao contexto de sofrimento.