2024-08-08 HaiPress
Corregedoria de Polícia Civil cumpre mandados de prisão e busca e apreensão na casa de um dos policiais acusados de extorsão a motoboy — Foto: Divulgação da Polícia Civil
GERADO EM: 08/08/2024 - 04:30
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A rotina de trabalho de X.,de 23 anos,começa por volta das 11h e não tem hora para acabar. Há um ano e meio,ele comprou uma motocicleta,já usada,ano 2015,para poder ajudar a família e ganhar a vida como motoboy,em dois empregos. No vaivém pelas ruas de Cabo Frio e São Pedro da Aldeia,fez amizades com outros rapazes que,como ele,dão um duro danado fazendo entregas. Em uma semana,X. diz ganhar R$ 1 mil pelo serviço. Na madrugada do dia 27 de março,ao buscar a moto,estacionada normalmente em frente de casa,não a encontrou. Havia sido furtada. Se não bastasse a dor de cabeça do furto,ao recuperar ele próprio sua moto,acabou passando por outra situação difícil. Ele conta que agentes da 123ª DP (São Pedro da Aldeia) lhe exigiram dinheiro para liberar o veículo.
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— Se a pessoa quer ser bandido,então não seja policial. Poxa,tirar dinheiro de qualquer pessoa é grave,ainda pior sendo de trabalhador. Eu fiz a coisa certa: registrei o furto na delegacia e,quando recuperei a moto,abandonada em São Pedro da Aldeia,procurei a delegacia de novo,para retirar o registro do furto do sistema. Passou um mês,e,apesar de estar tudo certinho nos documentos,a moto ainda constava como furtada. Nada de ser liberada. Foi daí que voltei na delegacia,e eles me exigiram R$ 1 mil. Eles queriam o valor de uma semana de trabalho — relembra X.
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Segundo o motoboy,após a divulgação da foto da sua moto furtada nas redes sociais,os colegas de profissão passaram a ajudá-lo a tentar descobrir onde ela foi parar. Uma semana depois,talvez por conta da pressão,alguns colegas avisaram que viram uma motocicleta semelhante à dele abandonada na Estrada da Caveira,em São Pedro da Aldeia,cidade vizinha a Cabo Frio,onde houve o furto. X. resolveu ir ao local fazer o reconhecimento.
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Balcão de negócios
— Era ela! Após um ano e meio,a gente conhece tudo da moto. O bandido deve ter sentido a pressão,porque a turma estava me ajudando. Nós motoboys somos muito unidos. Peguei eu mesmo a moto e fui com ela na 126ª DP (Cabo Frio),onde havia feito o registro. Disseram que eu tinha que ir a outra delegacia,a de São Pedro,porque ela tinha sido encontrada lá. Daí começou minha cruzada. Cheguei no balcão,fiquei esperando,esperando,até que o policial Edvando (Edvando Barros Leal) me atendeu. Até então,estava normal. Pediu meus documentos,os da moto. Tudo certinho. Aí chegou o Tadeu (Tadeu Themistocles Buzato Pinto),que passou a pôr um monte de empecilhos para resolver o problema da moto. Já passavam das 17h,quando o Tadeu foi embora — conta o motoboy.
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Segundo ele,cinco minutos após a saída de Tadeu,o celular de Edvando toca e o policial põe no viva-voz para que o rapaz ouvisse a conversa. Era o inspetor Tadeu.
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— Tadeu falou: 'cobra R$ 1 mil do moleque para liberar a moto dele'. Eu falei: 'Qual é? A moto é minha. Vai me cobrar por quê?' Aí ele (Edvando) disse: 'Ele é o chefe'. Eu respondi: 'Na moral,não tem essa condição,não! Pode falar para o seu colega'. Aí ficaram me enrolando,não queriam me dar os papéis para dar entrada na DRFA (Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis),para depois fazer a perícia. Aí ele me disse que tinha um caixa eletrônico no posto,do outro lado da rua,para pegar o dinheiro para eles — relata.
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Quando chegou ao caixa eletrônico,o rapaz fingiu que iria retirar o dinheiro,mas digitou como valor zero,o que deu erro na transação. Ele tirou uma foto do painel do equipamento e mostrou para o policial na delegacia,conforme o depoimento da vítima.
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— Eu fiz de propósito,porque não queria pagar nada. Era lógico que iria dar erro,porque não coloquei valor nenhum. Mostrei a foto para o Edvando,e ele liberou os documentos,mas não a moto. Eu fiquei esse tempo todo andando com outra motocicleta emprestada,porque ainda estava trabalhando. Quase meia-noite,retornei à delegacia com R$ 500. Eu disse: 'Olha,não tenho condição de dar esse valor que vocês estão me pedindo. Ou aceita R$ 500,ou minha moto fica aí. Eu não vou perder R$ 1 mil para vocês' — relembra.
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Propina na sala de evidências de DP
A vítima conta que Edvando já se encontrava na frente da delegacia lhe esperando. Segundo X.,o policial disse que a moto continuaria apreendida,até que o rapaz teve a ideia de fingir que estava conversando com alguém sobre a situação,o que deixou o inspetor nervoso.
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— Ele (Edvando) pediu que desenrolasse logo a situação. Começou a contar a história da vida dele,que era do Exército,foi policial militar e depois policial civil. Eu disse que não estava interessado na vida dele,e sim,na liberação da minha moto. Eu disse: 'Eu fui furtado e agora estou sendo roubado dentro da delegacia. Não quero saber de sua vida. A minha moto é de trabalho. Eu sou motoboy. Se eu não trabalhar,eu não ganho nada'. Aí ele falou para eu deixar o dinheiro na gaveta da sala de evidências da delegacia. Então,eu peguei a minha moto — diz.
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Corregedoria de Polícia vê vídeo sobre extorsão
Revoltado,o motoboy não conseguia nem olhar para os carros da Polícia Civil,porque lhe vinha à mente a extorsão que sofrera. Os colegas começaram a lhe perguntar detalhes sobre a recuperação da moto,mas ele não conseguia disfarçar a decepção. Até que um deles,sem que a vítima soubesse,decidiu contar a história num vídeo na rede social TikTok. Foi o bastante para o caso viralizar,chegando à Corregedoria de Polícia Civil,órgão responsável pela investigação de policiais civis que cometem desvios de conduta.
No vídeo,o narrador diz: “Poxa,moto roubada,passaram dois,três dias,achamos a moto,recuperamos a moto. Levamos à delegacia a moto,que é o correto a fazer. Inclusive,o motor já estava com outra numeração,chassi com outra numeração. Só que tinha outras características na moto que a gente reconheceu... Chegando lá (à delegacia),o policial civil não quis registrar (a recuperação da moto). Falou que era pela internet”,contou. Ainda de acordo com o narrador,o registro on-line não pôde ser feito,e o dono da moto voltou à delegacia e falou com um policial: “E,pasmem,pediu mil reais para liberar a moto. É o segundo roubo,né?”.
'Polícia protege polícia'
X. ficou preocupado com a postagem do vídeo:
— Eu dei uma bronca no conhecido que fez o vídeo. Eu disse que não daria em nada. Disse para ele: 'Polícia protege polícia,cara! Eles são colegas! Não vai dar em nada'. Eu não autorizei colocarem o vídeo — conta. — Então,um dia após sair na rede social,um policial da Corregedoria de Polícia me ligou. De primeira,eu neguei,mas depois não teve jeito. Os caras já estavam avançados na investigação. Sabiam tudo da ocorrência,sobre a moto. Fui intimado a comparecer na Corregedoria de imediato. Andei mais de 160 quilômetros da Região dos Lagos até o Rio,embaixo de chuva,perdi o dia de trabalho. Até o primeiro momento,neguei tudo. Na minha cabeça,só vinha o receio de que,se denunciasse,os policiais que me extorquiram iriam fazer alguma coisa comigo. A gente sabe como são essas coisas.
Alguns dias após a publicação do vídeo,um dos policiais da 125ª DP (São Pedro da Aldeia) procurou o motoboy por um aplicativo de mensagens,alegando que ele precisava voltar à delegacia para assinar uns documentos. X. sabia que estava tudo resolvido com relação à motocicleta,então percebeu que havia algo errado.
— Senti a maldade nele. Disse que tinha uma pendência. Fui lá na delegacia,mas deixei todo mundo avisado. O Tadeu e o Edvando me chamaram para dentro da cozinha da delegacia e me perguntaram sobre o vídeo. Eu disse que não tinha nada a ver com o vídeo. Eu disse que por mim a história morreu. Então,eles disseram que estavam preocupados,porque sabiam que a corregedoria estava por dentro da história. Depois,eles me mandaram entrar na sala do delegado,que me deu outra prensa. Perguntou se alguém tinha me pedido dinheiro,mas eu neguei. Como eu iria falar isso lá,na delegacia deles? — recorda-se.
Prisão de acusados de extorsão
Quando soube,na manhã desta quarta-feira (07/08),que os dois policiais foram presos,X. quase não acreditou. Ele conta que se sentia mal toda vez que via um carro da Polícia Civil na rua:
— Queria ter sido tratado com respeito. Eu não queria me vingar de ninguém. Aconteceu porque tem gente séria na polícia. Na verdade,isso (pedido de propina) deve acontecer toda hora,porque é o que a gente ouve falar. Quando acontece conosco,a gente tem receio. Esses caras têm colegas,são covardes. Eu não tenho inimigo. Pelo menos,não tinha. Essa prisão tirou um peso das minhas costas,porque ser obrigado a dar dinheiro para alguém que está ali para servir e proteger a sociedade nos dá uma sensação muito ruim. É como se tudo estivesse perdido.
O Grupo de Atuação Especializada de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio atuou em conjunto com a corregedoria na operação,batizada de Cinquecento,uma alusão ao valor da propina paga: R$ 500.
Após ouvir a vítima e testemunhas,a Corregedoria da Polícia Civil indiciou os inspetores Tadeu Themístocles Buzato Pinto,de 45 anos,e Edvando Barros Leal,de 50. A corporação pediu a prisão dos agentes.
O Gaeco,por sua vez,denunciou os policiais pelos crimes de extorsão e falsidade ideológica e ainda pediu ao juízo da 2ª Vara da Comarca de São Pedro da Aldeia a apreensão de celulares,computadores,documentos e pendrives,além de R$ 3 mil,joias e armas que estavam com os agentes.
A juíza Thais Mendes Tavares determinou a prisão de Tadeu e Edvando e concedeu os mandados de busca e apreensão nas casas dos acusados. Entre as provas obtidas pela corregedoria,há extratos bancários e cópias das conversas por aplicativo de mensagem de um dos agentes com a vítima. Procurada,a defesa dos policiais não se manifestou.